Santuário de Nossa Senhora da Piedade
- ARQ RIZOMA
- 27 de ago. de 2018
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Atualizado: 28 de ago. de 2018
No rio que corre o tempo, o passado sempre clama para ser escutado. O presente, crente, por vezes, ser muito dono de si, nega que se é como é, porque um dia foi passado. Já o futuro, sempre anunciando que vem, esquece que não é feito apenas de promessas: é semeado no dia de hoje com o que se tem. O tempo compõe destinos e a vida prova todo dia ser uma exímia escritora. Quem diria que no alto de uma colina se daria o início de Barbacena? Toda cidade tem um coração e o da “Princesa dos Campos” ressoa no que se pode chamar de marco zero da cidade. O Santuário de Nossa Senhora
da Piedade é o “Era uma vez” desta narrativa.
De fato, há um prólogo: em 1711, começou a construção da capela destinada a Nossa Senhora da Piedade nas terras que pertenciam a Fazenda da Borda do Campo. Neste local houve a sede primitiva da Paróquia de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo, capela esta que guarda até hoje sua relevância histórica. Fundada no século XVIII pelo coronel Domingos Rodrigues da Fonseca Leme tem conotação de semente, já que lá foi fecundada a cidade. No ano de 1725, Dom Antônio de Guadalupe, bispo do Rio de Janeiro, criou a freguesia de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo, onde foi sede da Paróquia até 1730. Todavia, devido ao seu tamanho e por não conter mais o número de fiéis, transferiu-se a sede da Paróquia para a Capela de Nossa Senhora do Pilar que pertencia a Fazenda do Registro Velho, primeiro Registro das Minas do Ouro. Esta possuiu a função de Matriz provisória, em período provável de 1730 a 1748. Contudo, sua construção não resistiu ao tempo, não deixando nenhum rastro de sua existência.
As duas capelas possuíam proporções modestas, tinham sido erguidas em propriedades particulares e não comportariam também a população que crescia. Desde a transferência da sede da Matriz de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo para a Capela de Nossa Senhora do Pilar, já se nutria a ideia de se mudar de local e construir um novo templo que guardasse as proporções tanto da fé que se semeava quanto do número de fiéis. Portanto, em 19 de agosto de 1726, com o “sim” de D. Frei Antônio de Guadalupe, bispo do Rio de Janeiro, ficou definido o novo sítio no qual se construiria um templo maior, atendendo a nova demanda, e, que hoje se contempla o Santuário. Vale dizer que na época tais terras correspondiam aos altos da “Caveira de Cima”.
No início do século XVIII, o rio das Mortes seguia seu curso tranquilo quando ainda nem havia ocorrido o fato que lhe dera em definitivo esse nome. Na sua nascente, viviam os índios puris com a pureza dos seus hábitos, tendo sido a Aldeia da Borda do Campo fundada pelos jesuítas. Com a vinda dos bandeirantes para esta região, o Caminho Novo se abria para por ele passar as riquezas de Minas. Muito ouro por aqui se conduziu. O novo caminho era uma alternativa e fazia a ligação entre o Rio de Janeiro e as Minas Gerais. Subindo dessa cidade, alcançava a Serra da Mantiqueira, passando pela Fazenda Passarinho, e por fim, tangenciava o vale da Caveira de Baixo, antes costeando o Morro da Caveira de Cima. É aqui onde, por escolha dos moradores do Arraial da Borda do Campo, que nasce a primeira célula da cidade de Barbacena propriamente dita, isto é, com a permissão das autoridades pertinentes se ganha o aval para a construção da
Igreja Nova.
Coube ao Sargento-mor José Fernandes Pinto Alpoim, engenheiro português, a criação deste projeto. É, por curiosidade, também autor de edificações marcantes em Minas Gerais, tais como, Palácio do Governador e a cadeia de Vila Rica, hoje Ouro Preto,
e também é de sua criação a planta da cidade de Mariana.
A construção da Igreja Nova se iniciou em 9 de dezembro de 1743, quando se ergueu
uma cruz no lugar exato onde seria edificado o templo, e se findou nos idos de 1764, totalizando 21 anos de concepção. O histórico da implantação da Igreja contempla dificuldades de várias ordens. Todavia, a mais expressiva ficou conhecida como o Impasse de Campolide, episódio esse que significou a tentativa de trazer da capela da Borda do Campo para a Igreja Nova a imagem de Nossa Senhora da Piedade. Não havendo, a princípio, recursos para adquirir imagens para a Igreja nem mesmo para a da própria padroeira, os habitantes resolveram, às escondidas, trazerem a dita imagem para a nova igreja. Como solução para este embaraço, determinou-se que seriam arrecadadas mais esmolas para que fosse possível adquirir nova imagem e colocando também a condição de que a primeira retornaria ao seu local de origem. Quando foi realizável, encomendou-se uma nova imagem em Portugal. Esta ao aportar no Rio de
Janeiro foi guiada até aqui em carro de boi e recebida com grande festa.
A nova imagem de Nossa Senhora da Piedade foi entronizada na data provável de 27 de novembro de 1748. A Igreja Nova não tinha sido ainda concluída, já que até esta data existia apenas a capela-mor feita de taipa de pilão. No entanto, foi entregue mesmo assim ao culto pelo vigário Antônio Pereira Henriques que concedeu a benção ao templo
e a todas as imagens.
A Igreja Nova se edificava isolada no alto do morro da Caveira de Cima, portanto para findar essa solidão, em 1744, a mando do Governador Gomes Freire de Andrade, com o intento de se criar um novo Arraial, desenhou-se uma planta para a organização urbana deste espaço. Segundo registrou mais tarde Saint-Adolphe: “a igreja paroquial se acha no
meio de uma grande praça, onde vão dar as duas ruas principais da cidade”.
A partir da primeira célula que foi o começo da edificação da Igreja Nova, com a implantação de moradias e de atividades comerciais, outras células foram se criando. É como a semente de uma planta que germina e segue crescendo. Daí nasce o conceito de Rizoma: a cidade evolui em um emaranhado de raízes. Não são de toda controláveis, mas todas guardam relações entre si. Margeando o Caminho Novo, é assim de modo
figurativo que se dá o início do Arraial da Igreja Nova da Borda do Campo.
Nos idos de 1751, fortes chuvas acometeram o Arraial de modo que acusaram a fragilidade da estrutura da Igreja Nova. Portanto, a prudência recomendou que se derrubassem as torres de taipa da edificação e se levantasse no lugar duas torres feitas de pedra e cal. Três anos depois, somou a instalação do assoalho das coxias e da capela-mor que como sugeria os costumes da época destinou-se este lugar ao sepultamento de quem provinha à Igreja. Em 1763, por decisão da Irmandade do Santíssimo Sacramento fez-se o novo frontispício e as duas torres de pedras atuais. Assim, a Igreja foi tomando a forma que hoje é permitido se contemplar. O Arraial crescia em volta da Igreja Nova e, por várias razões, o Arraial foi elevado à Vila de Barbacena em 14 de agosto em 1791. A verdade é que a história da Matriz da Piedade se conflui com a
história de Barbacena.
De acordo com os escritos de Saint-Hilaire, em uma de suas viagens a Minas Gerais, descreve os detalhes da Igreja naquele tempo: “A entrada é protegida pelo paramento do costume, de madeira lisa e caixilhos de vidro. O coro fica por cima da porta. Debaixo dele estão dois afrescos feitos por um pintor da terra representando a Paixão do Senhor, duas pias de água benta e, numa capela especial à esquerda, a fonte batismal de granito pintado toscamente de verde. Sete janelinhas colocadas muito altas deixam entrar uma luz suave e há duas tribunas para acomodar os importantes da terra. O soalho é de paralelogramos móveis de madeira, de seis pés por três, sinal de que aí já foi cemitério, costume que ainda se mantém na Europa do sul; aqui durou ele até que uma lei sensata,
um dos benefícios da febre amarela, pôs fim ao piedoso abuso.
(...) As seis capelas menores têm altares branco, verde e ouro. (...) Há também uma capelinha separada com o Santíssimo Sacramento com um crucifixo. (...) A arcada que conduz ao altar-mor ostenta um candelabro de prata maciça que vale 120 libras, dádiva do devoto Barão de Pitangui. (...) O altar-mor é branco e dourado com um Senhor Morto e uma Nossa Senhora de madeira pintada e talvez acima do tamanho natural. O efeito não é mau. O sacrário é grande; quatro candelabros maciços de metal dourado sustentam os círios, e quatro telas de óleo modernas e toleráveis representam a Flagelação, Nossa
Senhora ao Pé da Cruz, Agonia no Horto e a Ressurreição”.
Em suma, a Igreja de Nossa Senhora da Piedade apresenta partido arquitetônico com nave e capela-mor, três capelas, estando ao fundo a Sacristia. No seu interior, a decoração é considerada despojada, no estilo rococó. Os altares são dourados, há lustres, lâmpadas de prata e seis sinos. Pode se citar também por curiosidade, alguns painéis de grande valor artístico existentes na Igreja. São de 1933 e de autoria de Weber Lacerda as pinturas da “Sagrada Família”, “Anunciação” e “Santa Cecília”. Já as pinturas da “Flagelação ou Cristo da Coluna”, “Agonia no Horto das Oliveiras” e “Ressurreição” são de
autoria de José Correia de Lima e são em sua maioria do ano de 1853.
Como preciosidade histórica há também o relógio que se contempla na fachada da Igreja, em uma das torres. Este foi presente de D. Pedro II em visita a Barbacena. Com o desejo de perpetuar tal fato, o Padre Mestre Correa compôs um verso originalmente em latim, gravado no mostrador do relógio, que traduzido significa: “Quando aqui soa este
relógio, lembra à cidade, o presente de Pedro”.
A Matriz de Nossa Senhora da Piedade foi elevada à Santuário por Dom Luciano de Almeida, na comemoração dos 250 anos de transferência definitiva da sede da Paróquia para a então Igreja Nova. A título de preservação e de reconhecimento de sua relevância histórica, o hoje Santuário foi tombado pelo município e pelo IPHAN, nível federal, em 12
de agosto de 1986.
O tempo parece não ter passado para a Matriz de Nossa Senhora da Piedade. Ao seu redor tudo mudou. Tantas voltas o mundo fez e ela permanece reinando ali na praça, dona de si. Toda cidade tem uma alma na qual a sua afetividade e identidade se manifesta. Parte da memória de Barbacena mora no Santuário no qual tudo se originou. A aura da Igreja de Nossa Senhora da Piedade é recheada de histórias, mas este templo também é parte da história de muitos barbacenenses. Quantos clamores e orações aquelas paredes não ouviram? Quantos “sim” já foram ditos no altar? Quantas crianças receberam o primeiro sacramento na pia batismal? Quantas pessoas, sejam elas autoridades ou pessoas na sua dita simplicidade, entregam os seus desalentos todo dia a Nossa Senhora da Piedade? São citações breves e meros exemplos de como a Matriz é a atriz principal da praça central da cidade e que é permissivo dizer também que é narradora ao longo do tempo de grandes fatos. Os primeiros capítulos muito definem a história que se pretende contar e a história de Barbacena não poderia ter ganhado um
melhor “Era uma vez”.
Toda boa história tem um marco zero. Sempre há um pontapé inicial que divide o tempo e que marca uma época. Contudo, só se constata esse divisor ao longo do transcorrer dos anos, e não no aqui e agora. O Santuário de Nossa Senhora da Piedade é esse marco na história que se conta. No rio que corre o tempo, o passado sendo a morada de histórias que muito explicam nossas origens é o norte para o futuro. O presente é eterno no instante em que dura, mas a verdade é que o futuro chega a todo segundo.
Autor: Lílian Ribeiro Mendes Apolinário
Fotos: Victor Hugo Vieira
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